segunda-feira, 31 de maio de 2010

Gullar

Nestes casos costuma dizer-se "congratulo-me". É das palavras que mais detesto neste contexto. Fico contente, sim, mas não quer também dizer "parabenizo-me"? Não, não me dou os parabéns: dou-os a Gullar.
Foi uma honra ter editado a sua poesia completa nas Quasi. Honra tão grande quanto essa ter pedido à Joana Quental para ilustrar o seu "Um Gato Chamado Gatinho". Poemas breves, lindos, para gatinhos pequenos que gostassem de gatos. Gostei muito de ver a Adriana Partimpim a cantar alguns deles num Coliseu lotado.
Parabéns Ferreira Gullar pelo mais que merecido Prémio Camões. Congratulo-o.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Maria do Rosário Pedreira


Conheço a Rosário há muitos anos. O que até parece verdade se seguirmos o lema do Paulo de Carvalho do "dez anos é muito tempo". É há dez anos, isso mesmo. Sou um dos amigos que chegou até ela por outro lado que não o da edição (foi a poesia) mas que deixou - como não, se somos os dois editores? - que a edição contaminasse salutarmente a relação. É a melhor editora de literatura portuguesa em Portugal. O Todos os Dias, que continua a ser o livro que escrevi que tenho mais próximo do coração (e que temo nunca há-de deixar de ser) não seria sequer livro se não fosse ela. Mesmo que, por razões circunstanciais, até nem tenha chegado a ser ela a editá-lo - foi o João Rodrigues, que é o melhor editor de literatura portuguesa em Portugal. Ela ensinou-me muito, não conheço maior homenagem do que estas palavras. E um escritor que não quer aprender só pode ser uma merda. Talvez o seja: mas agradeço-lhe o facto de me ter ensinado o suficiente para não ser uma graaaaaaaaaaande merda. Claro está, se falho, é porque não aprendi. Como editora, não há melhor.
Tudo isto para dizer que ela tem um blogue novo onde vai falar de livros nas suas horas extraordinárias. Vai direitinho para a lista ao lado e fica aqui.
E ainda: a Rosário é, além de editora, escritora. Do Detective Maravilhas e, em parceria, do Clube das Chaves, que tenho a honra de editar neste momento na Pi. De um lindíssimo romance que editei nas Quasi. E de poesia, ah, de poesia. A Rosário é uma maravilhosa poeta. Bissexta, infelizmente, mas já com três livros que a confirmam como um dos nomes incontornáveis da poesia contemporânea portuguesa.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Flamingo


Li em rodapé, na SIC Notícias: encontrou-se o primeiro ninho de flamingos em Portugal. Confesso a minha ignorância: há flamingos em Portugal que nidifiquem? Onde, que eu não sei? Enfim, googlarei...

Mas lembrei-me logo de Stephen Jay Gould. Do seu "Flamingo's Smile" ou "O Sorriso do Flamingo", editado no final dos anos 80 na Gradiva. É lá que ele, por causa do sorriso invertido do flamingo, fala como sempre falou de Evolução. Mas é também lá que ele tenta mudar o nome de Némesis, a estrela companheira do Sol. Eu explico, sucintamente:

Os Alvarez, pai e filho (o primeiro, Walter, Nobel da Física) descobriram o que matou os dinossauros há 65 milhões de anos - um cometa que caiu onde é agora o Golfo do México. Foi a partir do irídio, nas rochas. Se quiserem saber, é só comprar "T-Rex - a Cratera da Destruição", editado pelo Luís Alves na Bizâncio.

Raup e Sepkoski a partir dessa descoberta fizeram uma análise estatística das extinções em massa na História da Terra. E perceberam que havia um padrão: a cada 26 milhões de anos ocorria um pico.

Mandaram o paper para Alvarez. Que não lhe ligou nenhuma. Mas um investigador da sua equipa, Richard Muller, ligou. E pensou o que raio poderia criar um ciclo de extinções com 26 milhões de anos. Postulou Némesis, uma estrela companheira do Sol que de 26 em 26 milhões de anos, com uma órbita elíptica, passava junto à Nuvem de Oort, atirando literalmente uma chuva de cometas para todas as direcções, nomeadamente para os planetas interiores do sistema solar.

Muller publicou o paper. Ao mesmo tempo dois outros investigadores postularam outras coisas, nomeadamente um Planeta X. Mas foi Némesis quem ficou na retina de todos.

Gould viu um pneu, como no artigo em que falava da Índia, onde a partir de pneus usados as crianças fazem chinelos e assim introduzia o conceito de exaptação.

E fez um artigo - depois reunido no livro citado - que queria mudar o nome de Némesis para Shiva. Porque Némesis é a deusa da destruição programada, e Shiva a da destruição aleatória. No seu mundo anti-determinista, Shiva fazia mais sentido.

A questão, claro, é saber se Raup e Sepkoski estão certos na sua análise estatística. Há quem diga que não - o que faz com tudo o que a seguir se postulou deixe de fazer sentido. E eu perguntei-lhes.

Duas vezes por email a Muller, que ainda hoje acredita que é esta a década em que se descobrirá Némesis (atentem a que descobrir uma anã branca, mesmo tão perto de nós, sem saber nada sobre a sua órbita que não seja o período, é como tentar encontrar uma agulha num palheiro - o céu é grande, já devem ter reparado).

Mas antes a Gould, caloiro que era, e da única vez que o encontrei: porque quis mudar o nome a uma coisa que não existe? E ele demonstrou porque era brilhante: "oh, I was so wrong", retorquiu.

As razões para o artigo, então, quais foram? Usar Némesis como um pneu? (Ele escrevia um artigo bem grandito por mês, talvez lhe faltasse às vezes assunto.) Mandar um abraço ao seu ex-aluno Sepkoski? (E aqui estamos na área da sociologia da ciência.) Querer acreditar que não há nada mais maravilhoso do que o sistema solar ser um sistema duplo. (E aqui estamos na área da psicologia da ciência.) Um dia gostava de estudar a resposta a estas perguntas.

Será que estava errado, afinal? Quero crer que não. Mas infelizmente acho que sim. Raup e Sepkoski nunca viram verdadeiramente provadas a sua periodicidade estatística. E Némesis ficou apenas no meio de um sorriso de um flamingo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O Luto


Aula Magna, sexta-feira, dia 7 de Maio. Entra em palco um homem já entradote, barriguinha à Benfica, óculos numa mão, cabelos brancos, um papel na outra. E diz: "não sei se leram - vejo que não - o papel à entrada. Mas Rufus Wainwright pede que por favor não aplaudam nem na sua entrada, nem durante o espectáculo, nem na sua saída - que também faz parte do espectáculo. Na tela será reproduzido um video de não sei quem (ele disse o nome, claro, eu é que não sei quem). Na segunda parte podem deitar a Aula Magna abaixo com aplausos."
E Rufus entrou. Com um vestido preto, meias de licra pretas, uma cauda que ficava estendida por todo o palco. No peito, aberto, folhos e folhos negros. Entrou em câmara lenta, pé ante pé. Sentou-se. E tocou o álbum novo, do início ao fim. Sem uma única falha, sem sequer saber que o estavam a ouvir e ver. Na tela um olho pintado de negro, muito negro, muito grande, abria e fechava e chorava. Depois mais olhos, negros, sempre negros, abriam, fechavam, choravam. Terminou. Saiu como entrou: pé ante pé, "devagar, devagarinho como a tua voz a adormecer o teu menino".
As palmas, finalmente.
As luzes acenderam para o intervalo. E eu disse: é um concerto sobre o luto. Ele está todo fodido com a morte da mãe. Já tínhamos reparado que não havia nenhuma referência à mãe no novo álbum, que ouvimos pouco. Mas ela está em todo ele. Nas músicas ao piano e à voz, barrocas. Há sempre vozes e vozes. Há uma voz numa mão do piano. Há outra voz noutra mão do piano. Há vozes que entram a meio destas, nas duas mãos. E depois há a voz que canta ainda outra coisa. Não são músicas fáceis, RFM, que entram no ouvido à primeira; nem à segunda; nem à terceira. Mas são geniais, percebi quando o ouvi tocar. E disse: que será a segunda parte? O Rufus que nós conhecemos a brincar sempre com o público?
Foi. Veio com lantejoulas e disse logo a abrir: "aqui estou eu, em mais uma desculpa para vestir collants". Tocou todas as músicas que eu queria, brincou com o Papa omnipresente em Lisboa, e com mais coisas ainda. Tocou "Poses", "Dinner at Eight", "Vibrate". Chegou-me.
Mas no fim, já todos contentes, disse: "agora quero falar da minha mãe". Disse que há uns dois anos, num dia solar, visitou um sítio de que não sabe o nome (era Belém, nós gritámos todos mas ele não queria saber, era só, como sempre, estilo), onde estava uma torre e uns homens a andar para o céu num padrão dito dos descobrimentos. E que com ela viu no chão o mundo inteiro. E que hoje, sexta-feira, foi lá sozinho e estava um dia muito escuro. E que a mãe já tinha navegado como os navegadores para outro sítio melhor. E disse: vou tocar esta música dela, que redescobri quando, com a minha irmã, comecei a encontrá-la em discos antigos. E tocou. Imagino-a muito fraca, folk de trazer por casa nos anos setenta. Mas os arranjos disseram que não, que era uma grande música. E foi.
Disse: ele está todo fodido com a morte da mãe. A segunda parte do concerto foi uma mentira. Ele dizia piadas mas chorava. E acabou o concerto como começou - e como tocou: em luto.

segunda-feira, 10 de maio de 2010